Tenho um amigo, um bom e velho amigo - daqueles que não se encontram por aí aos pontapés, nem pouco mais ou menos. A nossa amizade já vem de há longos anos e, embora sendo mais velho, ele sempre viu em mim o mesmo que eu vi nele, um amigo, um igual, sem superioridades ou inferioridades de qualquer tipo. Este meu amigo sempre procurou ajudar-me, e eu, quando mais novo, na minha mais limitada experiência, sempre procurei ouvi-lo e tentar perceber o que ele me queria dizer, não me coibindo também, de tempos a tempos, de meter a minha colherada mais ou menos apropriada. Nem sempre concordamos ao longo dos anos - mas não é da discordância que nasce a força das relações? Nem sempre mantivemos o contacto - mas sempre soubemos que a amizade que nos unia não dependia de meras distâncias ou temporalidades. Por vezes víamo-nos confrontados com a indispensabilidade de sermos brutalmente honestos um com o outro em situações onde não havia espaço para o luxo da delicadeza. Acredito, e ele também, penso, que todos precisamos de alguém nas nossas vidas que nos faça ver as coisas de forma amargamente fria (mesmo sem dizer nada) mas que depois esteja lá perfazendo o par de pegadas nas areias que percorremos. Esta segunda premissa é a mais difícil de cumprir: vozes à nossa volta levantam-se com uma frequência medonha, mas mãos estendidas em auxílio são raras e as areias frequentemente movediças.
Este meu amigo casou bastante novo e há já considerável período de tempo. A vida mostrou-lhe que a doçura e as agruras andam frequentemente de mãos dadas e no dia em que nasceu o seu único filho, perdeu o seu amor de sempre naquele imenso gesto de amor que é dar ao mundo uma vida. Já lá vão quase vinte anos. Nunca mais casou. Nós, os amigos, tentamos ser parte útil na formação do pequeno e no fortalecimento do espírito do jovem pai. Outros, mais velhos, terão tido um papel mais relevante, mas nunca deixei de me mostrar disponível para honrar a nossa amizade.
Como já aqui disse, nem sempre a nossa amizade se fez de absoluta concordância. Mas, entre altos e baixos, nunca houve um afastamento que não trouxesse nova aproximação. A amizade também vive muito disso; afinal, se viver todos os dias cansa, também o não respeito do espaço dos outros causa desconforto inevitável.
Certa ocasião, as disparidades dos nossos discursos e modos de agir chegaram a um ponto aparentemente limite. O meu amigo “cresceu” como um pai-galinha, se assim se pode usar a expressão. O seu pequeno, agora bem maior, era sempre, a seus olhos, isso mesmo: “o seu pequeno”. O rapaz, agora homem e com uma personalidade forte como a do pai, nem sempre conseguia estabelecer laços com outras pessoas dos seus mundos. Partilhava de sobremaneira o dia-a-dia do pai e era-lhe difícil estabelecer com outros algo que era fundamental para o seu progenitor, um círculo de amigos – daqueles brutos que nos dizem a verdade e depois nos estendem a mão. Esse tema representava a maior e mais frequente das nossas discussões. Dizia-lhe:
- Ó pá tens que deixar o miúdo fazer o caminho dele. Não podes andar sempre em cima, deixa-o aprender, fazer asneiras. Se ele não fizer umas estupidezes valentes de vez em quando não aprende!
- Nada disso – dizia-me ele – o meu filho não é desses que se estão sempre a meter em chatices, a eles e aos pais. Eu não o obrigo a fazer nada, o rapaz é atinado, só isso.
- Mas não achas que é atinado de mais para a idade que tem? – contrapunha eu.
- Ouve lá, mas tu queres que eu lhe diga para se meter em sarilhos para ver se aprende a viver? Ele é quase um homem, bom aluno, educado, respeitador. Com tudo o que lhe aconteceu, o que nos aconteceu, acho que até está muito bem!
Era difícil discutir depois de lançado esse argumento… Mesmo assim insistia:
- Claro que é um óptimo rapaz, um tipo às direitas. Mas não achas que ele devia ter mais amigos, sair com eles, dá umas voltas com umas miúdas…
- Ouve lá, mas tu és meu amigo ou não?! Agora queres que ele se vá meter em trabalhos só por tu achas que ele não é normal?
- Eu não disse que ele não era normal, apenas que….
- Esquece, não digas mais nada. Somos os dois muito felizes, não precisamos de supostos amigos que andem sempre a apontar o que está mal. Eu faço tudo pelo meu filho, e ele é feliz. Se não acreditas pergunta-lhe!
As discussões acabavam sempre de modo mais ou menos semelhante a este. Não era possível dizer mais nada. Ele tinha razão, claro. O rapaz era um aluno brilhante, não arranjava problemas a ninguém e parecia ser feliz. É certo que passava muito tempo sozinho, frequentemente metido em livros. Quando saía era com o pai, com quem se dava muito bem. Tinha aulas, claro, mas por morar longe da escola, e talvez por escolha própria, nunca estava com gente da idade dele. Tentei várias vezes dizer ao pai que o devia meter num desporto qualquer, incentivá-lo a estar com outros jovens. Tentei, na minha posição de amigo, fazer ver que a um pai não compete dirigir em absoluto a vida dos filhos. Um homem não pode ser ajudado a ser homem por um pai que lhe diz coisas como: “usa esta camisa que te fica melhor”, “tens que cortar o cabelo, mas só desbastar”, “anda para aqui”, “faz assim”, etc. Com estas atoardas, frequentes ainda para mais, apenas incentivava a dependência e a falta de confiança de um espírito ainda em formação. Imagino que para o rapaz as coisas deveriam parecer muito diferentes, afinal foi o pai que sempre esteve a seu lado. As constantes críticas e reparos deveriam ser nada mais do que conselhos de amor de um pai preocupado que merecia a sua total obediência.
Claro que é fácil falar das coisas depois de elas acontecerem. Mas o papel de um pai, de um amigo, na vida de um adulto, não pode ser o de alguém que conduz, impõem e limita. Deverá antes ser alguém cuja interferência passe pela criação de oportunidades para que o nosso amigo, ou filho, tome por si as suas decisões, sem a influência por vezes chantagista de alguém que tem a sua própria agenda e quer que a outra pessoa tome as decisões que melhor se enquadram nela. Devemos abrir portas aos nossos amigos, estender-lhes a mão quando os vemos em areias movediças, mas apenas eles podem escolher atravessar a porta ou agarrar a mão. Se os obrigamos arriscamos torná-los mais fracos, se não lhes dermos a mão ou se não criarmos uma oportunidade, arriscamos a que, subjugados pelo peso de um mundo que não compreendem, sucumbam ao peso do seu desespero.
Nunca deixei de ser amigo desse meu amigo. Ele nunca deixou de reciprocar o sentimento. Concordamos em aceitar as diferenças que nos separavam. Nunca deixamos de estar presentes nos momentos mais sensíveis que cada um viveu. E sei que mais do que nunca ele precisa de mim, e eu estarei lá para o ajudar como posso, mesmo sendo mais novo e mais inexperiente.
Faz amanhã seis meses que o seu filho se suicidou na casa onde sempre moraram. Escolheu a véspera do seu vigésimo primeiro aniversário para terminar com a vida. Nunca mostrou sinais óbvios que pudessem justificar a sua opção. Como já aqui descrevi, era um homem inteligente, educado, respeitador, um pouco calado, demasiado isolado, mas parecia, no geral, feliz.
O meu amigo não mudou muito. Continua activo, empenhado no seu dia-a-dia. Quem não conhece os pormenores nunca diria possível o que há tão curto espaço de tempo se abateu sobre ele. Nós, os amigos, não temos coragem de o confrontar com a realidade, com o que poderia ter sido feito para evitar uma morte inocente. Será a delicadeza de não o obrigar a confrontar-se com a verdade, ou será a culpa que todos nós sentimos, a certeza que nos assombra de que poderíamos ter feito mais, criado mais oportunidades, cedido mais vezes a nossa mão… Ele vive agora num mundo estranho, desse mundo apenas nos mostra um estreito mirar. Visto de fora trata-se de alguém que aceitou as amarguras da vida e que segue o seu caminho sem precisar de consolos ou ajudas. Efectivamente emula bem o seu filho neste aspecto, tudo parece bem visto do exterior, só alguém muito próximo saberá e saberia o que na alma se esconde(ia).
Tenho um amigo, um velho amigo. Apesar de todas as nossas diferenças, sei que estou mais próximo dele do que a maioria. Mas nem por isso irei ter com ele para lhe dizer “tens que fazer isto”, “vê as coisas desta maneira”, “faz o que te digo”. Por vezes vou ter com ele e ficamos muito tempo sentados, de cerveja na mão, sem dizer nada. Sei que ele está em areias movediças e a minha mão estará sempre estendida caso ele opte por agarrá-la. E continuadamente criarei oportunidades para que ele possa ter a opção de segui-las, porque no meu modo de ver as coisas, nada pode ser pior do que querer mudar e não ter opções, do que querer partilhar e não ter com quem o fazer; e nunca lhe direi nada - porque o passado ninguém o pode mudar - mas garantirei que sempre que ele deixar pegadas num qualquer areal poderá olhar para trás e ver que não fez o caminho sozinho. Porque ele tem um amigo.